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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Uma aldeia na cidade

No meio de um inverno com muita chuva, esta semana de sol tem sido uma bênção. Ontem, em vez de ir almoçar, decidi alimentar o espírito e fui passear para uma das minhas zonas favoritas de Lisboa: Campo de Ourique. O dia estava lindo e, embora estivesse frio, o sol e a caminhada proporcionaram-me algo que, com alguma imaginação, até se assemelhava ao calor suave de um dia de primavera.

Entrei pela Ferreira Borges que, apesar de inigualável quando as árvores estão repletas de folhas, não deixa de ter a sua beleza sob um tecto de ramos nus...


No fim da rua, lá estão a Tentadora e a Concorrente, cujas iguarias e traquitanas não me convencem, mas cujos prédios onde se encontram são, para mim, dos mais espectaculares da cidade. 


E a concorrência é feroz, porque Lisboa tem prédios lindos... uns recuperados na sua magnificência, outros dignamente respeitados e acarinhados por quem lá vive, outros acusando já algum desleixo dos seus donos... 


... e ainda outros, tantos, fechados a cadeado, a aguardar moribundos o momento da sua morte, enquanto se vão cozinhando por debaixo das mesas das autarquias os condomínios Palace, Garden, Plaza, Terrace ou, numa alternativa sofrível, qualquer nome português que fique 'bem' com consoantes dobradas... enfim, mesmo ao gosto de uma certa mentalidade portuguesa...    


Ainda assim, renovados, de meia idade, ou moribundos, devem parte do seu encanto àqueles detalhes que a sociedade do descartável acha irrelevantes e que são precisamente aquilo que mais me cativa.  


O plano quadriculado deste bairro tem alguns elementos centrais, sendo um deles o Jardim da Parada. A fotografia que eu esperava tirar não estava lá à minha espera: pela primeira vez desde que me lembro, não havia velhotes a jogar às cartas. Dois ou três estavam perto das mesas, de pé, conversando apenas. Talvez fosse por causa do frio. Quem sabe, por causa da vida. Havia, porém, as senhoras e os seus cães, a velhota a aquecer os ossos fustigados pelo frio, um motard a ler Dostoiévski, uma jovem avó a mostrar os pequenos prazeres da vida à sua neta, uma criança num baloiço, até as árvores... todos a apreciar aquele momento glorioso naquele bairro que mais parece uma aldeia ou, quem sabe até, uma vila...  


E a partir do jardim continuei determinada em cumprir o meu plano de percorrer quatro ruas numa hora. Mas o que encontrei no número cinquenta e dois da Rua Quatro da Infantaria fez-me mudar de planos...


Isso mesmo. Uma mercearia antiga. Com armários antigos. Prateleiras antigas. E o mesmo empregado de há cinquenta e cinco anos, que não só me deixou fotografar a loja (e a si próprio), como fez questão em mostrar-me o antigo relógio que está na parede da sala escondida por detrás daquela porta. E, é claro, contou-me um pouco da sua vida.


Apesar de não ter querido sorrir para a fotografia, foi com um sorriso que o Sr. José Coutinho acolheu a minha atenção e as minhas perguntas, não deixando de fazer as suas. Sou um homem de Fafe, a menina é do Norte? Nada disso, respondi, sou de Lisboa mas gosto de aproveitar a hora de almoço para tirar umas fotografias.

Não convencido, o Sr. Zé achou então que eu era jornalista... Tenho cá tido jornalistas e repórteres e até já cá veio a televisão! E eu disse-lhe que não e comentei o quanto gosto de Campo de Ourique e como tenho pena de as casas serem tão caras. Toda a gente quer vir para Campo de Ourique, justificava o Sr. Zé, mas é um bairro envelhecido, as casas estão muito velhas! Olhe, menina, este prédio e o do lado vão abaixo e tudo! E caiu-me o coração. Como é possível irem destruir um sítio assim... mas ao Sr. Zé não pareceu fazer tanta diferença... tenho um café aqui ao pé - esse é mesmo meu - e levo a mercearia para lá. Leva o negócio, é certo, mas aquele sítio lindo vai mesmo desaparecer...

E foi assim que me contou que veio de Fafe para Lisboa com doze anos, no comboio que parava em todas as estações, imagine!, para passar uma semana com os tios, que tinham a mercearia. Sabe, nesse tempo entregava-se as compras à porta e como estavam à procura de um moço que o fizesse, lá fiquei eu... era só uma semana e já se passaram cinquenta e cinco anos, menina! , dizia-me, não percebi se com mágoa, orgulho ou resignação. E contou-me também que a tia - ou seria a irmã da tia? -, Maria Odete Coutinho, foi a primeira cançonetista a interpretar a Canção do Mar (não pense que foi a Dulce Pontes ou a Amália!). 

Estavamos neste ponto quando chegou o carteiro, com a correspondência e o rosto aceso de esperança para o Porto-Benfica. E o Sr. Zé (benfiquista desde que nasci, como qualquer homem que se preze em Fafe!) esqueceu por momentos as suas memórias e lá fez a conta do pão e fruta que comprei para o almoço e dos legumes que trouxe para a sopa. Adeus, menina, volte sempre!!! 

Pode ter a certeza de que volto, Sr. Zé!




5 comentários:

  1. São estas imagens que me fazem ter saudades da minha Lisboa :)

    Alfacinha e bairrista de gema espero sempre conseguir cheirar um pouco nas fotos de Lisboa o que se vai perdendo com o tempo e com as novas gerações...

    Quando era criança adorava ir às compras com a minha avó, a essas que eram (e por sinal anda são) as autênticas mercearias.

    Obrigada por partilhares este cantinho :)

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  2. De nada :) Espero que ajude a matar as saudades :)

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  3. excelente reportagem Susana, era 1 prima do Zé, a minha mãe, p quem a canção d mar foi escrita. Tenho 1 livro q relata sumáriamente a história dessa mercearia,(entre outras histórias), terei mto gosto em mandar-lho s estiver interessada, o meu email é mtcunha@hotmail.com
    adorei, obrigada!!

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  4. Obrigado pelo comentário. Gostava muito de ver o livro, depois mando-lhe um mail.

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  5. 5 anos depois a sua reportagem ganha nova força, agora como documento histórico! De facto, o edifício foi mesmo demolido, e o Sr. José Novais Coutinho, passou para o outro lado da rua.
    Desenvolvo um projecto sobre a história do bairro de Campo de Ourique (https://www.facebook.com/Campo-de-Ourique-True-Story-952593498135568/), que partiu de um trabalho académico. Uma das minhas publicações foi sobre a Mercearia Coutinho, e dado a inexistência de fotos do interior deste espaço, optei por utilizar as suas (devidamente identificadas). Espero que não se importe... Muito obrigado! Susana Maia e Silva

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