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sexta-feira, 8 de abril de 2011

A Avenida do suicida

A Almirante Reis será seguramente uma das mais longas artérias de Lisboa. Ao longo dos seus quase quatro quilómetros, se incluirmos a Rua da Palma, o seu estranho apêndice, conseguem observar-se, sem grande esforço nem dotes de perspicácia, as marcas da história da cidade no último século.


Começa no que já foi a Praça do Areeiro e que agora se chama Sá Carneiro, numa decisão que parece ter querido esconder a vergonha que sentimos pelo tratamento que foi dado à sua morte pelo nosso sistema judicial, compensando-o ao rebaptizar esta importante praça da capital com o nome de um homem que, bem vistas as coisas, teve uma importância muito relativa numa história de quase novecentos anos. Bom, num país que li algures ter inventado o minuto de silêncio – a mais bonita homenagem aos que nos deixam – o melhor que se conseguiu foi, para além da invocação toponímica, aplicar uma reprodução em tamanho extra-largo da cabeça do homem a olhar precisamente para a Almirante Reis.


O princípio da Almirante Reis (tal como a praça Sá Carneiro) é dominado por edifícios ao estilo da arquitectura do Estado Novo, com fachadas austeras, rectilíneas e fortes, numa dimensão que parece querer mostrar ao indivíduo a sua pequenez face ao desígnio comum – a nação, a raça ou qualquer outra das tretas que então queriam fazer as pessoas engolir. Não gosto muito mas tem vantagens, associadas à sensação de ordem e de espaço, que não encontramos em zonas mais caóticas e quase claustrofóbicas da cidade, e mais bonitas por isso mesmo, como a Mouraria ou o Bairro Alto.


Nas primeiras horas de uma manhã de sábado, o trânsito quase não existe. Vêem-se por aqui sobretudo velhotes à espera. Esperam autocarros, esperam às mesas dos cafés e à porta das lojas enquanto trocam dois dedos de conversa. Também há os que aproveitam os poucos raios de sol para brincar com os netos no pequeno jardim da Praça João do Rio.


O domínio da arquitectura do velho regime tem o seu apogeu na Alameda D. Afonso Henriques. Dominada pelos estranhos paralelepípedos envidraçados do Técnico, a Alameda testemunhou alguns dos mais quentes e decisivos episódios da história recente do país mas também alguns dos acontecimentos menos relevantes. É que foi por ali que nasci, num edifício que já não consigo identificar.


Para além de mim, nasceu lá o meu irmão e também alguns dos nossos primos. A família, que não é pequena, tinha o hábito de se juntar fosse qual fosse o pretexto e essa união (que nós, os que nascemos na Alameda, não soubemos cultivar com a mesma intensidade) também se fazia notar no sítio que escolhiam para trazer as crianças ao mundo.


A esquina do antigo cinema Império trouxe-me de volta à Almirante Reis, que aqui começa a ter ares menos salazarentos, mas antes disso só mais uma coisa sobre o Império: foi aqui que vi o filme do Super-Homem, tinha eu mais ou menos a idade que a minha filha tem agora. Lamentavelmente, o Império já não passa filmes como antes mas parece que ainda é palco de proezas tão sobre-humanas e irreais como as do homem de aço num fim que deve envergonhar aquela fachada forte e poderosa. A mim envergonha-me.


A partir daqui a Avenida evoca aspectos mais democráticos da nossa história. Apesar da renovação que se vem fazendo sentir, ainda se podem ver algumas lembranças do tempo em que a República dava os seus primeiros passos, sendo o mais evidente o painel na fachada da Portugália, reduzida à cervejaria propriamente dita agora que as ruínas da fábrica foram derrubadas contra a promessa da construção de habitação a preços acessíveis para jovens famílias. Eu não acredito, mas dou-lhes o benefício da dúvida.



A partir da Praça do Chile, onde impera a estátua de Fernão de Magalhães, e em direcção à igreja dos Anjos sobressai o carácter mais cosmopolita, que Lisboa sempre teve, nas feições orientais que comigo se cruzam na calçada, no português transatlântico que se ouve e no comércio de orientação étnica que aparece aqui e ali.


À porta, a Igreja dos Anjos anuncia ter o seu interior reconstruído de forma exactamente igual à anterior que foi destruída por um incêndio no início do século XX. Não tirei fotografias (apesar de ateu, tenho um pudor inexplicável que me impede de tirar fotos no interior de templos sem pelo menos ver alguém a fazê-lo, mesmo sabendo que já fiz o suficiente para não me escapar ao lado mais quentinho da eternidade). Peço desculpa pela ego-trip e sigo adiante para acrescentar que a igreja é magnífica, completamente decorada com talha dourada e que me pareceu estar num excelente estado de conservação.


A riqueza do interior da igreja contrasta com o que se passa à sua volta. Vêem-se pessoas sentadas nas escadas a comer em recipientes de plástico, outras a jogar às cartas na tampa de um caixote do lixo e, mais afastados, alguns em actividades que não consegui perceber mas que fizeram por disfarçar quando me viam aproximar. A razão para esta atípica concentração de pessoas só me foi explicada mais tarde quando me disseram que do outro lado da rua fica a sopa dos pobres.


Só saí da Almirante Reis ao desviar para o largo do Intendente, sítio estranhamente pacato, onde se podem observar os painéis de azulejo da loja de loiça da centenária fábrica da família Lamego. Os velhotes que habitam os prédios mais ou menos decadentes enganam a solidão assomando-se à janela. Ainda espreitei para a Rua do Benformoso mas a fama da zona, o aspecto geral do que lá se passava e o facto de andar com uma máquina que me custou mais que o salário mínimo nacional fez-me recear a incursão. Voltei à Almirante Reis, que a partir daqui se chama Rua da Palma e desci até ao Martim Moniz para umas compras (a desculpa que me levou ali) e apanhei o Metro de regresso ao Areeiro.


Só mais um parágrafo para contar o que descobri sobre o Almirante Reis. Foi um combatente anti-monárquico, homem mais de acção do que de palavras e que participou em várias revoltas republicanas. Na última, a que foi bem sucedida, foi levado ao desespero por más notícias sobre a evolução dos acontecimentos tendo-se suicidado, o que o impediu de assistir ao fim da monarquia contra a qual lutou durante uma boa parte da sua vida.


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