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quinta-feira, 10 de maio de 2012

Cais do Sodré (lê-se Caixodré)

Gosto do Cais do Sodré. Tem memórias que não quero perder. Estão lá o barco que trazia a minha avó, tão ansiosamente esperado como odiado no momento em que a levava de volta a Almada, o ritual de jantar no Rio Grande com os meus pais e irmão (o melhor frango assado de Lisboa - mesmo que não seja verdade) e, mais tarde, as noites do Jamaica, o cacau da Ribeira, o último comboio da noite (que às vezes se perdia), o eléctrico preso pelos carros mal estacionados e liberto pelos passageiros.
Claro que estas memórias não estão presentes todas as vezes que ali passo. Não estão quando vou de carro, quando o Cais do Sodré é só mais um semáforo que é preciso vencer depressa. É preciso ir lá. Com o vagar que as memórias exigem. Que merecem.

E por isso fui. Retomei o caminho interrompido há quase um mês. Agora o largo de S. Paulo estava mais habitado, mais amigável, quase a envergonhar-me das palavras com que o caracterizei. Segui a rua de S. Paulo até depois do arco formado pela rua do Alecrim, até chegar à rua Nova do Carvalho, a rua dos bares. A rua mais cosmopolita de Lisboa. São cerca de 500 metros lineares onde cabe Roterdão, Tóquio, a Jamaica, a Europa. Onde paradoxalmente mal cabe toda a gente que cá quer vir, agora que está longe da gloriosa decadência, quando era dominada por bares de putas (na altura não me lembro de existir a palavra alterne) mas que já tinha o Jamaica cheio que nem um ovo e onde a noite não era noite sem uma zaragata das antigas. É claro que está melhor agora mas a saudade está-nos tatuada no carácter e não posso deixar de sentir alguma pela rua de antigamente.


A Rua de S. Paulo acaba na Rua e Largo do Corpo Santo, onde começa a rua do Arsenal, via que durante anos pensei ser a dos Bacalhoeiros, por causa das lojas que vendiam o amigo fiel e ainda o fazem, apesar da pressão para satisfazer a clientela turística com ímanes, camisolas chinesas do Ronaldo e garrafas baratas de vinho do Porto.  
Depois da Praça do Município, onde espero se continue a comemorar a república, mesmo que se trabalhe, alcancei um Terreiro do Paço outra vez, ou talvez ainda, em obras, embora confinadas à sua extremidade a Norte.
Também a Ribeira das Naus está em obras. Como sempre. A placa que lá está agora promete o seu fim até final deste ano. Mas fala também de uma ameaçadora segunda fase cujo prazo não é referido. Fico com a impressão que o exame final dos cursos de arquitectura é projectar remodelações àquele pedaço histórico de Lisboa (correndo o risco de ser óbvio, a avenida tem esse nome porque era dali que partiam as naus quinhentistas). Assim, os projectos são tantos que, quando os estudantes passam a arquitectos têm que os implementar numa pulsão remodeladora que parece não ter fim.
Se algum aspirante a reformador da Ribeira das Naus me estiver a ler, deixo a sugestão – deixem-na quieta. Não há nada pior do que ter um Tejo preso por tapumes, atrás das barras de um estaleiro, numa imagem a que nem faltam placas a dizer Nova Ordem Justa, o nome da empresa que impede que se roubem as escavadoras e os anéis de esgoto…
Regressei ao Cais, verdadeiramente ao Cais, através de um espaço novo, cedido a instituições europeias e roubado aos cacilheiros. Aliás essa obra, ou outra antes, roubou também dali o relógio que carregava a responsabilidade de marcar a hora legal. O relógio (ou outro, não sei) está lá, a menção à legalidade da hora é que não.
Mas não faz mal. O Cais do Sodré está fora e por cima do tempo. Tem um presente cheio de memórias, sejam elas pequenas e pessoais como as minhas, ou grandes, colectivas e colossais como as da partida das naus para o mar desconhecido.


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