As saudades que eu tinha de dar um passeio... De estar apenas comigo, sem pressas, sem estar a olhar constantemente para o relógio. E de fotografar. Ontem esteve um dia glorioso. Frio, mas absolutamente fantástico. Quando acordei e vi o sol, soube que tinha que pegar na máquina e ir sair, quebrar a rotina que tem regido a minha vida nos últimos cinco meses. Aproveitar os últimos dias antes de regressar ao trabalho para finalmente descansar um pouco. E foi o que fiz. De mochila às costas, peguei no carro e fui até à Ajuda. Nos meus planos, estava ir ao Palácio Nacional para ver a exposição do Botero, visitá-lo se houvesse tempo e terminar o passeio no Jardim Botânico.
O Palácio Nacional data do século XVIII e foi mandado construir por D. José I após o terramoto de mil setecentos e cinquenta e cinco. Feito em madeira para ser mais resistente a novos sismos, ficou conhecido como Real Barraca. Quis porém a ironia do destino - e o facto de ser em madeira, pois claro - que um grande incêndio o destruísse no final desse século, ditando o bom senso que a sua reconstrução fosse em pedra e cal. Mas este processo sofreu muitos soluços - alterações de estilo, fugas para o Brasil, invasões francesas e (espantem-se!) falta de dinheiro - por isso ainda hoje falta uma das fachadas do palácio (história completa aqui).
Ainda assim, bela é a estatuária que recebe os visitantes e as arcadas não perdem encanto por desembocarem num pátio de paredes incompletas.
Preparava-me eu para ir ver a exposição do Botero, quando me deparei com aquela palavra mágica que me desvia sempre de qualquer caminho previamente traçado: biblioteca.
Já tinha visto umas fotografias da dita e resolvi tocar para saber se poderia espreitar. Apesar de não estar aberta ao público, recebi uma visita guiada, com uma bela lição de História. Infelizmente não pude fotografar tudo aquilo que gostaria, mas deixaram-me fazê-lo do primeiro andar, que costuma estar interdito nas duas datas em que abre ao público - dezoito de Abril e finais de Setembro. E percebe-se porquê, o corrimão é daqueles nada amigos de quem tem vertigens e menos ainda adequado para proteger vários visitantes ao mesmo tempo. Ainda assim, vertigens à parte, consegui umas belas fotos.
Se tudo correr bem, voltarei em Abril na data oficial e fica a promessa da reportagem que este sítio merece. De olho e alma cheios, fui ver a exposição Via Crucis - A Paixão de Cristo, do Botero, que é só um dos meus artistas favoritos. Infelizmente não se pode fotografar, então deixo-vos algumas imagens de outros sites, que não estão com grande qualidade. O que mais me fascina na obra de Botero são as cores, que não negam a sua origem latino-americana. Nos vinte e sete quadros desta série, as últimas horas de Cristo estão retratadas numa mistura personagens da época com figuras e sítios actuais - desde carrascos de uniforme da guarda até ao homem de fato preto, que vai aparecendo em vários quadros. Apesar de não apreciar o tema, sugiro que vejam a exposição porque os quadros são extraordinários.
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Soube entretanto que uma das partes do palácio está fechada, por isso adiei a visita ao seu interior para outro dia. Para não variar, é proibido fotografar, pelo que tenho que ver se consigo uma autorização para fazê-lo. Juro que é uma mania que me custa a entender, qual é o mal de tirar fotografias? Que saudades dos museus londrinos, onde se pode fotografar tudo o que se quiser...
Adiante. Saindo do Palácio e antes de ir ao Jardim Botânico (que mostrarei num próximo post), fui dar uma volta pelas imediações para espreitar a torre que se eleva omnipresente no nosso campo visual. É conhecida como Torre do Galo e sobreviveu à demolição da capela real, esta construída em madeira tal como o havia sido o Palácio. Ali fiquei um pouco a apreciar o sol de inverno e um silêncio prazenteiro, até que...
... olá Dona Rosa (ou seria Arlete? Odete, talvez?), oiço gritar a miúda franzina de gorro roxo na cabeça, que saía da carrinha da mãe para a porta da pequena mercearia da família, ali, mesmo à minha frente, assustando os pombos que como eu apanhavam sol. Que linda que estás com essa touca, respondia-lhe a velha Rosa ou Arlete ou Odete, enquanto se aproximava no seu passo ainda vigoroso, apesar de aparentar mais de setenta e cinco anos e do luto carregado. Mas estás sempre linda, não é? E a miúda seguia contente com o elogio, correndo atrás da mãe até ao café, para ir beber uma água e comer um bolinho. E a Dona Odete, Arlete ou Rosa continuou caminho, de encontro aos afazeres próprios da hora do almoço.
É desta malha que (ainda) se tece Lisboa. Dos grandes monumentos, cheios de erudição, ladeados pelas pequenas e modestas casas de bairro, dos vizinhos que se conhecem pelo nome e, porque não, da roupa estendida entre árvores de um jardim público.
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